Santo Arsênio, "fundador dos anacoretas e animador dos eremitas, no século IV da era cristã"
Deus fala no silêncio!
CARDEAL D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID
Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro
As sagradas páginas da Bíblia testemunham e exaltam o Verbo Divino, Encarnado no ventre da Virgem Maria, expressando, de modo admirável, a ação benevolente de Deus, cujo designo consistiu em revelar-se a si mesmo e manifestar o seu amor por meio do seu Filho unigênito, trazendo, assim, a salvação aos homens. Tendo constatado a precisão com que Deus falou, outrora, a nossos antepassados por meio dos “profetas” e nesses, que são os últimos tempos, o modo como fala-nos por meio de seu Filho único (cf. Hb 1,1), as Sagradas Escrituras não deixam de acenar para a necessidade do silêncio humano diante de tão grande mistério. “O Senhor é bom para os que nele esperam e o buscam; é bom esperar em silêncio a salvação do Senhor; tudo irá bem ao homem que suportar o jugo desde jovem” (Lm 3,25-27).
Definitivamente, o silêncio conquistado por Nossa Senhora, em sua vida, não era inato, nem sequer estático, mas, sobretudo, dinâmico, de atitude diante de tudo o que era revelado (cf. Lc 2,19). Canta-se, com insistência, em nossas comunidades à Virgem do silêncio: “Virgem, que sabe ouvir o que o Senhor te diz, crendo, geraste, quem te criou. Ó Maria, tu és feliz!”
O silêncio espiritual, portanto, não pode ser considerado como mera passividade diante das grandes turbulências da vida, tampouco como a inércia psicológica estruturada pelo misticismo.
Ora, a Tradição da Igreja preserva inúmeros testemunhos da riqueza espiritual, vivenciada pelos santos, através do silêncio. A respeito disso, destacamos a expressiva e contundente consciência de Arsênio, fundador dos anacoretas e animador dos eremitas, no século IV da era cristã: encontrou respostas precisas sobre o silêncio no imperativo divino, que norteou sua vida e suas instruções: “Foge, cala e repousa [FUGE, TACE, QUIESCE]” (Arsênio, 1.2).O primeiro imperativo de Arsênio é uma resposta bastante coerente para os cristãos, em especial para aqueles que vivem em grandes centros metropolitanos, como é o caso da vida proposta pela agitação carioca. Opõe-se sensivelmente à proposição psicológica da fuga da realidade ou da angustiante insanidade do espiritualismo desencarnado e insiste na atividade da consciência humana, que é orientada para a realização última do homem. Ao invés de escapar para o deserto em busca de uma estrutura fantasiosa, o eremita era impulsionado a encontrar um lugar de estabilidade e segurança, por meio do qual sua vida era centralizada nos ensinamentos de Cristo, orientada pela graça e confirmada pela comunidade eclesial, com a qual nunca perdera os laços.
A experiência dos Apóstolos no lago de Genesaré face à tempestade e, em especial, a provação de São Pedro, caminhando sobre as águas, traduzem o valor da exortação para o refúgio na quietude: nunca se limitou em superar as agitações, o medo, os barulhos, a escuridão da noite ou a violência das circunstâncias, porém, a partir da virtude da fé, o imperativo “fugir” se verificou na firmeza inspirada e assegurada por Cristo (cf. Mt 14,26-33). Portanto, o primeiro passo na mística do silêncio é a centralidade da vida cristã firmada em Jesus Cristo.Ademais, ao recomendar a quietude, Santo Arsênio apreciará o silêncio como domínio das más inclinações do espírito humano e fundamento das virtudes. O silêncio acentuado pelos santos facilita ao fiel o detectar das raízes da soberba e da prepotência em si mesmo, para, assim, continuar crescendo na fé. Havendo ressentimento em seu coração, por aquilo que o silêncio indica, os seus sentimentos serão purificados e reordenados. Assim, diante do aquietar-se o homem enxerga os ideais de conversão, propostos pelas bem-aventuranças, abrindo-se cada vez mais à vida nova, oferecida por Deus.A terceira e incisiva exortação do monge anacoreta é a necessidade do repouso. Como os outros imperativos, também este precisa ser entendido para além das noções de passividade. Esse repousar segue o percurso da doação extrema, da entrega absoluta. A capacidade de silenciar é verificada pela disposição da doação sincera, que conduz à quietude. Não é aquele silêncio estimulado pelas monótonas recitações e repetições viciadas, por vezes necessárias à vida de oração, que acabam por se converter em descanso e sono. Esse silêncio supera a rotina e rompe com a preguiça. É, portanto, a força da voz de Deus na vida do homem. Palavra ofertada, Verbo Encarnado, Deus, feito homem... Comunhão! O silêncio revela a vivacidade e a eficácia da palavra de Deus, que “é mais penetrante que a espada de dois gumes, penetra até a separação da alma e espírito, articulações e medula, discerne os sentimentos e os pensamentos do coração” (Hb 4,12). Esse silêncio é mais expressivo que as línguas e qualifica a caridade: “o amor é paciente, é afável; não é invejoso nem fanfarrão, não é orgulhoso nem faz coisas inconvenientes, não procura o próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acabará...” (1Cor 13,4-8a). Tudo o que se opõe a isso é considerado metal estridente, címbalo que retine, não pertence ao silêncio.
Foge para estabilidade, cala em função do domínio de teus impulsos e repousa, a fim de seres generoso! Ouve a voz do teu Divino Mestre e tudo o que fizeres, faze em segredo, em silêncio, e o Pai celestial, que tudo vê e conhece, te recompensará! Silencia, para vencer o amor próprio e o egoísmo(Mt 6,4), cala-te, para alcançar a comunhão com teu Deus e com teus irmãos (Mt 6,6) e aquieta-te, para que cresças e, em tuas fraquezas, encontres a força espiritual de que precisas (Mt 6,18), para avançar, sempre mais, no caminho da intimidade com Deus e da santidade.